JÁ SINTO EM SONHO sobre eu ‘star morto
A erva nascer.
E como a noiva que vê do porto
A nau crescer
Que traz seu noivo e chora por tê-lo,
Porque, chegado,
Morre a feliz ‘sperança de vê-lo
E a ‘sperança é bela.
Assim... Não sei... Sobre eu ‘star morto
A erva...
Mas que tem isso com eu ‘star morto
Sinto-o e não sei...
Morre a ‘sperança que tem de vê-lo,
E tê-lo é perder querê-lo ter ao lado.
NA SOMBRA E NO FRIO da noite os meus sonhos jazem.
Um frio maior cresce do abismo, e decresce.
Toca-me o coração de dentro a Mão que conhece.
As estrelas sobem. Por cima de mim se desfazem.
Ah, de que serve o sonho? O que acontece
Não é o que nós queremos, mas o que os Deuses fazem.
O silêncio oscila. Na inércia da hora paira
Um murmúrio ansioso da sombra.
A minha vontade é um acto alheio, um gesto visível
A olhos para quem o mundo visível é o que nós não vemos.
De que braço é todo o meu ser um só gesto abstracto?
Que movimentos no ar são as minhas acções queridas?
Falta ao meu senso de mim um ajuste e um tacto.
Jaz no chão com meus sonhos a cinza de todas as vidas.
ERAM TRÊS FILHAS de rei.
A hora é de prata.
No palácio do Norte
Tinham a mesma sorte.
Uma era loura e leve.
Outra era loura e alta.
Outra era como um rio
Que corre ao longe macio.
Eram três filhas de rei.
Nenhum príncipe veio.
Eram três velhas perdidas
A sonhar as suas vidas.
Deus as guarde na morte.
Eram três filhas de rei.
Deus as guarde na morte
No palácio no Norte.
Eram três filhas de rei.
Quem elas eram não sei.
UM PIANO na minha rua...
Crianças a brincar...
O sol de domingo e a sua
Alegria a doirar...
A mágoa que me convida
A amar todo o indefinido...
Eu tive pouco na vida
Mas me dói tê-lo perdido.
LÁBIOS QUE POUSAM e que entreabertos
Escutam palavras do coração...
Assim dentro dos olhos, mão
Consciente sobre o sofá, madeixa caída
Ligeiramente
P’ra quê, se o sonho é melhor que a vida?
O REINO LONGÍNQUO dos ÍDOLOS mortos
Tem cousas e seres com negra expressão.
Nenhum viajante desceu aos seus portos.
Ninguém o deixou após tê-lo em visão.
Todas as cousas ali são conscientes.
As arestas olham com um olhar seu.
As pedras e as plantas e as águas são entes
Em quem como em nós Deus bem não morreu.
Se às vezes, nas horas mais frias da vida
Eu ergo a minha alma até onde há céu,
Renasce a memória, que eu tinha esquecida,
Do Reino sinistro que o Tempo esqueceu.
NÃO TENHO NADA p’ra te dizer
Salvo que a vida já não me quer.
Não tenho nada para te ouvir
Para que ouvir? Se não sei sentir...
Sofro nos sonhos, sofro na vida.
Não tenho norma, nem direcção...
Levo o cadáver da fé perdida
Para o jazigo da ilusão.
SÚBITA MÃO de algum fantasma oculto
Entre as dobras da noite e do meu sono
Sacode-me e eu acordo, e no abandono
Da noite não enxergo gesto ou vulto.
Mas um terror antigo, que insepulto
Trago no coração, como de um trono
Desce e se afirma meu senhor e dono
Sem ordem, sem meneio e sem insulto.
E eu sinto a minha vida de repente
Presa por uma corda de Inconsciente
A qualquer mão noturna que me guia.
Sinto que sou ninguém salvo uma sombra
De um vulto que não vejo e que me assombra,
E em nada existo como a treva fria.
PASSAM AS NUVENS, murmura o vento
Passam as nuvens, vão devagar.
Demoro em mim o meu pensamento
E só encontro não encontrar...
Passam as nuvens, os ventos vão,
Levam as nuvens a um vago além,
Mas nunca a dor de meu coração
Ou a ânsia vaga de que provém.
Passam as nuvens, não têm destino
Salvo passar, não ficar aqui...
Assim meu ser tivesse um divino
Nenhum-destino, não ser de si.
Passam as nuvens, eu fico e tenho
Por meu destino pior, ficar...
Sem saber donde, nuvem, provenho
Ou qual o vento que me há-de levar...
TEUS BRAÇOS DORMEM no teu colo,
Quebras o busto para a frente.
Teu perfil é de desconsolo,
Mas a minha alma é que é doente.
Talvez tu penses, fugitiva,
Nalguma ’sp’rança que te faz
Não triste, mas só pensativa,
Porque o sonho não satisfaz.
Eu, porém, para quem tudo é
A minha sombra sobre o mundo,
Ponho teu corpo, como o vê
Meu olhar, no meu ser profundo,
E interpreto para ânsia e erro
A tua simples posição,
Só para que haja mais desterro
No meu perdido coração,
Só para que entre o mole ondear
Do cortejo dos meus afectos,
Os sonhos sejam incompletos
E o cortejo sempre a acabar.
Não importa. O teu vulto cisma,
Ou, se não cisma, cismo-o eu.
Deixa que a hora passe, e abisma
Meu sonho nesse gesto teu.
QUANDO EU AMEI não fui amado,
Nem fui amado sem amar.
Todo o meu ser ficou parado
A meditar.
LEVAI-ME PARA LONGE em sonho,
Ó som do mar,
Um vago mal-estar risonho
Me venha alhear
Da consciência do momento
Que, definida,
Paira em meu vago pensamento...
O sonho é a vida...
NOMEN ET PRAETEREA NIHIL
Mina-me a alma com suavidade,
Com uma incerta angústia meu ser come
Uma vaga, indecisa saudade
Só de um nome.
Onde o ouvi? Qual era? Não o sei.
O seu efeito em mim apenas vive
E a ideia de que ouvindo-o é que criei
A dor que em mim revive.
Rainha o teve? ou que princesa morta?
Ou fada incerta o usou para fadar?
Quem foi agora não me importa.
Sem ele já não posso mais sonhar.
Ao pé dele – não sei se em quem o tinha,
Se nele só, ouvindo-o e nada mais –
Sinto a felicidade viver minha.
Sílabas irreais,
Murmúrio vago, arfar de incerta sugestão,
Tirai da flor do ramo, só para ouvir
O segredo, o mistério ou a canção,
Que faz a dor sorrir,
Indefinida incompreensão falada
Da vida por passar, como a que foi!...
Nome sem fim! Não me sejas nada!
Sem ti a vida dói...
Sem a esperança oculta no teu vago
E amortecido brilho sou apenas,
O cansaço de mim, certo e aziago,
Morta flor nada sendo à flor do lago.
PENUGEM
Uma leve (veludo me envolve), vaga,
Vazia brisa
Como uma impressão imprecisa se propaga
Pela minh’alma imprecisa.
Pendem, oscilando, do caule da Hora – a rosa
Rara raiou –
As flores que outrora perfumaram a luminosa
Vida que (já) passou.
E tudo porque uma brisa, como quem brinca, brinda
Ao meu hesitar
O insulto inútil da sua veludínea e linda
Voz de variar;
Porque sob o azul do sul um vago, ou um afago
Que sugere, ou contém,
A ideia de vida feliz ou de morte tranquila, vago
Afago vem.
E eu dispo de mim as intenções e as memórias
Na abstracta fragrância,
E a Hora é apenas o terem-me contado ’stórias
Na minha infância.
MEU PENSAMENTO, dito, já não é
Meu pensamento.
Flor morta, bóia no meu sonho, até
Que a leve o vento.
Que a desvie a corrente, a externa sorte.
Se falo, sinto
Que a palavras esculpo a minha morte,
Que com toda a alma minto.
Assim, quanto mais digo, mais me engano,
Mais faço eu
Um novo ser postiço, que engalano
De ser o meu.
Sim, já pensar é fala que reside.
Já falo assim.
Meu próprio diálogo interior divide
Meu ser de mim.
Mas é quando dou forma e voz do ’spaço
Ao que medito
Que abro entre mim e mim, quebrando um laço,
Um abismo infinito.
Ah, quem me dera a perfeita concordância
De mim comigo,
O silêncio interior sem a distância
Entre mim e o que eu digo!
SOSSEGO ENFIM. Meu coração deserto
Nada espera da inútil caravana.
Pouco a pouco meu ’spírito se irmana
Na própria perda do saber incerto.
É sempre além de mim o indescoberto
Porto ao luar com que se o sonho engana.
De imperceptível, este sonho plana
Para a vida em completo desacerto.
Estagno a lagos de algas por achar,
Sinto vogar o barco das amadas.
A noite despe não haver o luar
E como um filtro de horas encantadas
Tremem os rios, gelam as estradas
No absurdo vácuo de eu não ter que amar.
INTERVALO
Quem te disse ao ouvido esse segredo
Que raras deusas têm escutado –
Aquele amor cheio de crença e medo
Que é verdadeiro só se é segredado?...
Quem to disse tão cedo?
Não fui eu, que te não ousei dizê-lo.
Não foi um outro, porque o não sabia.
Mas quem roçou da testa teu cabelo
E te disse ao ouvido o que sentia?
Seria alguém, seria?
Ou foi só que o sonhaste e eu te o sonhei?
Foi só qualquer ciúme meu de ti
Que o supôs dito, porque o não direi,
Que o supôs feito, porque o só fingi
Em sonhos que nem sei?
Seja o que for, quem foi que levemente,
A teu ouvido vagamente atento,
Te falou desse amor em mim presente
Mas que não passa do meu pensamento
Que anseia e que não sente?
Foi um desejo que, sem corpo ou boca,
A teus ouvidos de eu sonhar-te disse
A frase eterna, imerecida e louca –
A que as deusas esperam da ledice
Com que o Olimpo se apouca.
FICÇÕES DO INTERLÚDIO
I
PLENILÚNIO
As horas pela alameda
Arrastam vestes de seda,
Vestes de seda sonhada
Pela alameda alongada
Sob o azular do luar...
E ouve-se no ar a expirar –
A expirar mas nunca expira –
Uma flauta que delira,
Que é mais a ideia de ouvi-la
Que ouvi-la quase tranquila
Pelo ar a ondear e a ir...
Silêncio a tremeluzir
II
SAUDADE DADA
Em horas inda louras, lindas
Clorindas e Belindas, brandas,
Brincam no tempo das berlindas,
As vindas vendo das varandas.
De ouvem vir a rir a vindas
Fitam a frio as frias bandas.
Mas em torno à tarde se entorna
A atordoar o ar que arde
Que a eterna tarde já não torna!
E em tom de atoarda todo o alarde
Do adornado ardor transtorna
No ar de torpor da tarda tarde.
E há nevoentos desencantos
Dos encantos dos pensamentos
Nos santos lentos dos recantos
Dos bentos cantos dos conventos...
Prantos de intentos, lentos, tantos
Que encantam os atentos ventos.
III
PIERROT BÊBADO
Nas ruas da feira,
Da feira deserta,
Só a lua cheia
Branqueia e clareia
As ruas da feira
Na noite entreaberta.
Só a lua alva
Branqueia e clareia
A paisagem calva
De abandono e alva
Alegria alheia.
Bêbada branqueia
Como pela areia
Nas ruas da feira,
Da feira deserta,
Na noite já cheia
De sombra entreaberta.
A lua baqueia
Nas ruas da feira
Deserta e incerta...
IV
MINUETE INVISÍVEL
Elas são vaporosas,
Pálidas sombras, as rosas
Nadas da hora lunar...
Vêm, aéreas, dançar
Como perfumes soltos
Entre os canteiros e os buxos...
Chora no som dos repuxos
O ritmo que há nos seus vultos...
Passam e agitam a brisa...
Pálida, à pompa indecisa
Da sua flébil demora
Paira em auréola à hora...
Passam nos ritmos da sombra...
Ora é uma folha que tomba,
Ora uma brisa que treme
Sua leveza solene...
E assim vão indo, delindo
Seu perfil único e lindo,
Seu vulto feito de todas,
Nas alamedas, em rodas
No jardim lívido e frio...
Passam sozinhas, a fio,
Como um fumo indo, a rarear,
Pelo ar longínquo e vazio,
Sob o, disperso pelo ar,
Pálido pálio lunar...
V
HIEMAL
Baladas de uma outra terra, aliadas
Às saudades das fadas, amadas por gnomos idos,
Retinem lívidas ainda aos ouvidos
Dos luares das altas noites aladas...
Pelos canais barcas erradas
Segredam-se rumos descridos...
E tresloucadas ou casadas com o som das baladas,
As fadas são belas, e as estrelas
São delas... Ei-las alheadas...
E são fumos os rumos das barcas sonhadas,
Nos canais fatais iguais de erradas,
As barcas parcas das fadas,
Das fadas aladas e hiemais
E caladas...
Toadas afastadas, irreais, de baladas...
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