samedi 5 septembre 2020

TECNOBIOGRAFIA

TECNOBIOGRAFIA Gostaria de começar esse escrito de ocasião – que é exigência da disciplina sobre uso de recursos tecnológicos na educação – com uma reflexão sobre esse neologismo “tecnobiografia”: cunhado a partir de três noções do grego antigo, tékhne (técnica, arte), bíos (vida, modo de vida) e graphía (escrita, traço), o termo poderia ser entendido como uma escrita sobre as relações pessoais que alguém manteve com certa forma de técnica ao longo de sua vida. As especificidades do trabalho dessa disciplina limitam os tipos de “técnica” a serem abordados nesse escrito apenas às tecnologias digitais, o que dá um direcionamento sobre o tipo de experiência a ser abordado. Além disso, como devemos remontar a nosso próprio passado com o objetivo de responder ao roteiro proposto (como ficará explicitado abaixo), trata-se na verdade de uma “tecno-auto-bio-grafia”. Outra forma da escrita de si, portanto. Após esses desajeitados prolegômenos, passemos ao que é pedido do estudante de licenciatura em Letras: Português/ Francês que eu sou. PRIMEIRAS MEMÓRIAS DE VIDA Tenho uma vaga lembrança de algo muito caro, precioso e merecedor de todo o cuidado que meu pai adquiriu em meados dos anos 1990. Deve ter sido por volta de 1996. Eu contava então oito anos de idade. Lembro-me de poucas coisas da época pois, quando tento reconstituir as imagens de então, vêm na verdade minhas últimas memórias de nossa casa no interior (Santa Bárbara / MG). Era um quarto bem amplo. O computador grande, branco-amarelado, ficava encostado na parede, perto de uma janela que dava para a rua. Ligava-o de tempos em tempos e usava o PaintBrush para desenhar. Gostava de usar as formas geométricas para desenhar padrões intricados e depois, com o spray, destruir tudo. Tenho uma lembrança vívida de quando meu pai começou a insistir que eu aprendesse a datilografar – o verbo mais preciso seria digitar, mas nas minhas memórias todo mundo falava datilografar – e, depois de instalado o Datilog, comecei a atacar aquela série infinita de letras, números, acentos e outras marcas do teclado: a princípio, olhando, hesitantemente teclando, perdendo a paciência e partindo para “catar milho” (como nos referíamos a quem digitava usando apenas os dedos indicadores); pouco a pouco, contudo, aprendendo a usar os cinco dedos das duas mãos e me deliciando com a possibilidade de fazê-lo loucamente ao som de alguma peça de Beethoven num dos CDs que meus pais tinham. Sei que quase nunca usava a internet. Era a época da discada e isso tornava tudo complicado, difícil e bem custoso: ainda mais porque essa tecnologia só chegou em nossa cidade depois dos anos 2000 e administrar o tempo de uso entre meus pais e meus dois irmãos era bem complicado. Acho que nunca – ou quase nunca – fiz pesquisa com fins pedagógicos num computador: usávamos a Barsa (Encyclopaedia Britannica) e outros livros estranhos que minha mãe julgava imprescindíveis para nossa biblioteca. Meu contato com o virtual era para entrar em chats da Uol, ICQ com meus amigos (que foi depois substituído pelo MSN) e buscar sites de RPG. MEMÓRIAS DA ÉPOCA DA EDUCAÇÃO BÁSICA Como mencionei acima, não tenho lembrança de ter usado muito tecnologias digitais em ambiente pedagógico. É certo que meus pais tentavam me convencer de que a internet era uma ferramenta muito séria e importante para fazer trabalhos da escola, mas a verdade é que demorei a me dar conta do seu potencial educativo. Na escola, quando eu tinha algo como 13 anos de idade, eles construíram um laboratório de informática e instituíram uma disciplina para nos ensinar os fundamentos do uso do PC. Aos pares e aos trios, voltávamos nossos olhos para o professor e tentávamos reproduzir os comandos do Word, do PowerPoint e do Excel, muitas vezes com pouco sucesso e muita frustração (no meu caso, sobretudo por causa das fórmulas esdrúxulas e das tabelas), mas... Pensando bem, percebo agora que esse primeiro contato foi muito importante para uma série de desenvolvimentos futuros do meu relacionamento com a tecnologia digital. PRÁTICAS ATUAIS Se dez ou quinze anos atrás me mostrassem um filme com a exibição de um dos meus dias de hoje, quando estou com 31 anos de idade, acho que seria incapaz de acreditar em meus olhos: atualmente, uso a internet todos os dias, praticamente desde que acordo até – com certos intervalos, é claro – a hora em que durmo. Uso muitas páginas: a do meu Gmail, a de repositórios de livros digitalizados (LibGen) e artigos (Jstor, cujo acesso é facilitado pela do Sci-hub), a da Estante Virtual, a do MinhaUFMG (Moodle) e muitos outros de consulta, como Wikipedia, Perseus e dicionários diversos. Enfim, muitas outras, a depender da pesquisa. Evidentemente, desde o início do isolamento social, no Brasil, meu contato com as tecnologias digitais e o mundo virtual se intensificou muito: atuo como professor voluntário na UFMG, ministrando a disciplina de Fundamentos de Literatura Grega, além de trabalhar também como tutor voluntário do Apoio Pedagógico. Esses dois vínculos institucionais com responsabilidades pedagógicas me motivaram a entrar de vez nas redes sociais e assumir um lado que até então desconhecia: produtor de conteúdo para a internet. Confesso que isso veio com muitas dificuldades e resistências da minha parte, pois, não bastasse ser pouco interessado em tecnologias de modo geral, eu compartilhava de uma série de preconceitos intelectualistas (o valor negativo ou positivo desse termo só depende de quem estiver lendo o texto) sobre a qualidade desse tipo de material e a pletora de novas ocupações exigidas pela sua produção: Bloggers, Vloggers, Instagrammers, YouTubers, BookTubers etc. E esse sufixo em -er só tornava tudo mais ridículo. Depois de um período de negação, recusa e resistência, contudo, comecei a levar essa coisa toda um pouco melhor e, no final das contas, assumi a proposta na chave da brincadeira e acho que tem dado certo: hoje me considero um sujeito com potencial pra bloguerinho e tenho trabalhado essa ideia de modelar minha imagem nas redes. Sempre com alguma pitada de (auto)ironia, é claro. Tendo isso tudo em vista, atualmente tenho um perfil no Facebook (que é bem antigo, desde 2009, e que já usava antes para manter contato com amigos distantes), outro do YouTube (que também é antigo, embora só tenha começado a produzir conteúdo de verdade nos últimos meses) e outro, bem recente, do Instagram (@gts.rafa). Gosto de pensar em meus perfis do Lattes e do site academia.edu como facetas mais acadêmicas dessas outras redes sociais, não como fenômenos fundamentalmente distintos: self-fashioning e networking (para recorrer aqui aos tão onipresentes termos do inglês). Ou seja, emprego essas redes sociais devido a interesses pessoais, mas tento combiná-los com utilidades profissionais e pedagógicas. A meu ver, esse cruzamento entre nossas vidas e nossas obras tem se tornado cada vez mais difícil separar e nem sei se eu conseguiria propor uma separação aí atualmente. Creio que o que sou e o que faço acabam se misturando de forma que potencializa a mistura toda. USO DE DISPOSITIVOS MÓVEIS Curiosamente, sempre tive alguma resistência ao uso dos dispositivos móveis: tanto por parte das pessoas com quem convivo (familiares, amigos e estudantes) quanto por mim próprio. Acho que isso se deve a algum tipo de nostalgia do período em que vivíamos livres disso tudo: a conexão em tempo real com quase qualquer pessoa do planeta o tempo todo, independentemente do lugar em que estivermos, pode parecer algo digno de admiração, mas a verdade é que certas coisas admiráveis podem ser terríveis. Talvez eu sinta que essas redes sirvam não apenas para nos conectar, mas também para nos prender. Acho que muitas pessoas compartilham, pelo menos um pouco, dessa desconfiança comigo. Em todo caso, há cerca de quatro ou cinco anos, não pude mais resistir e fui adquirido por – quero dizer, adquiri – um smartphone. Não que eu fosse totalmente inexperiente nesse terreno de dispositivos móveis: algumas antes usava um tablet de tempos em tempos, mas ele só funcionava com o Wifi e isso faz toda a diferença do mundo. O “celular inteligente”, com um pacote de dados razoável, permite a conexão o tempo todo praticamente, em qualquer lugar e a qualquer momento, impondo uma experiência bem diferente. O que entrou na minha vida como um complemento quase dispensável na época, útil talvez para fazer um contato rápido com a namorada ou a família, pesquisar algo com mais rapidez e facilidade, tornou-se uma prótese da qual acredito depender cada vez mais. Não apenas para manter contato com familiares, amigos e estudantes, mas também para escrever, pesquisar, escutar música, assistir a palestras... Até mesmo pensar. Estranhamente, talvez para ser. E eis que minha nostalgia e minha desconfianças parecem cada vez mais justificadas aos meus próprios olhos. O problema, contudo, é que o retorno dessa situação se revela cada vez mais improvável e indesejável. Eu, pessoalmente, nunca sofri uma censura ou uma proibição de fato por usar um dispositivo móvel. Tive professores que se diziam contrários a que nós os utilizássemos em sala de aula, mas o emprego rápido para uma consulta pontual nunca me gerou problemas. Frequentemente, esse tipo de emprego foi bem proveitoso para mim e até mesmo para a discussão, quando eu conseguia me assegurar de alguma informação e trazer algo relativamente para o debate. Da mesma forma, nunca censurei ou impedi que usassem dispositivos móveis durante minhas apresentações e cursos: quando alguém passa o tempo todo com os olhos vidrados na tela de um smartphone ou um tablet é bem incômodo para quem se apresente, pois ficamos com a impressão do mais completo descaso e desinteresse, mas fazer o quê? A pessoa provavelmente não se interessaria muito mais se fosse impedida de consultar o seu aparelho. TRANSIÇÕES Como relatei acima, minha transição da realidade imediata do contato físico para esse período de isolamento social e de interações restritas praticamente ao mundo virtual veio com alguma resistência. Entretanto, com o apoio da minha namorada e o incentivo de alguns estudantes e amigos, comecei a lidar de forma cada vez mais perspicaz com a nova realidade. Hoje mantenho meu canal do YouTube sempre atualizado com materiais bem diversificados, em abordagens acadêmicas de assuntos do meu interesse (Literatura, Filosofia, História etc.). Os meus perfis do Facebook e do Instagram passaram a ser, além de plataformas para manter contato com pessoas queridas, meios para a divulgação dos meus trabalhos: nesse sentido, tenho inclusive conhecido muitas pessoas novas e interessantes, enquanto divulgo as minhas propostas e promova as áreas a que me dedico (em especial, os Estudos Clássicos). Dessa experiência, creio que não haja retorno. Passamos por cima de uma pinguela que não vai ficar de pé se tentarmos voltar por ela: daqui, só será possível seguir adiante. Não digo isso achando que “seguir adiante” seja da ordem de um “progresso”, ou seja de um avanço inquestionavelmente positivo – pois, como deixei claro, acho que há muito para ser criticado nisso tudo –, mas julgo complicado que voltemos “ao que era antes” depois dessa experiência. Estamos nos virtualizando por meio das tecnologias digitais, cada vez mais o tempo todo, em todos os lugares, e não tem volta. O processo tem uma série de exclusões, injustiças e violências. Precisamos discuti-las e tentar acabar com elas. Contudo, uma defesa romântica e nostálgica do passado dificilmente terá sucesso.