vendredi 4 février 2011

Gregório de Matos (português)

Seleção do que há de melhor na poesia erótico-religiosa do "Boca do Inferno":


Admirável expressão que faz o poeta de seu atencioso silêncio
Largo em sentir, em respirar sucinto,
Penso, e calo, tão fino, e tão atento,
Que fazendo disfarce do tormento,
Mostro que o não padeço, e sei que o sinto.

O mal, que fora encubro, ou que desminto,
Dentro no coração é que o sustento:
Com que, para penar é sentimento,
Para não se entender, é labirinto.

Ninguém sufoca a voz nos seus retiros;
Da tempestade é o estrondo efeito:
Lá tem ecos a terra, o mar suspiros.

Mas oh do meu segredo alto conceito!
Pois não chegam a vir à boca os tiros
Dos combates que vão dentro no peito.


Descreve com galharda propriedade o labirinto confuso de suas desconfianças
Ó caos confuso, labirinto horrendo,
Onde não topo luz, nem fio achando;
Lugar de glória, aonde estou penando;
Casa da morte, aonde estou vivendo!

Oh voz sem distinção, Babel tremendo;
Pesada fantasia, sono brando;
Onde o mesmo que toco, estou sonhando;
Onde o próprio que escuto, não o entendo.

Sempre és certeza, nunca desengano;
E a ambas pretensões com igualdade,
No bem te não penetro, nem no dano.

És ciúme martírio da vontade;
Verdadeiro tormento para engano;
E cega presunção para verdade.


Segunda impaciência do poeta
Cresce o desejo; falta o sofrimento;
Sofrendo morro; morro desejando:
Por uma, e outra parte estou penando,
Sem poder dar alívio ao meu tormento.

Se quero declarar meu pensamento,
Está-me um gesto grave acovardando;
E tenho por melhor morrer calando,
Que fiar-me de um néscio atrevimento.

Quem pretende alcançar, espera; e cala;
Porque quem temerário se abalança,
Muitas vezes o Amor o desiguala:

Pois se aquele, que espera, sempre alcança;
Quero ter por melhor morrer sem fala;
Que falando, perder toda a esperança.


Chora um bem perdido, porque o perdeu na posse
Porque não merecia o que lograva,
Deixei como ignorante o bem que tinha,
Vim sem considerar aonde vinha,
Deixei sem atender o que deixava:

Suspiro agora em vão o que gozava,
Quando não me aproveita a pena minha,
Que quem errou sem ver o que convinha,
Ou entendia pouco, ou pouco amava.

Padeça agora, e morra suspirando
O mal, que passo, o bem que possuía;
Pague no mal presente o bem passado.

Que quem podia, e não quis viver gozando
Confesse, que esta pena merecia,
E morra, quando menos confessado.


No fluxo e refluxo da maré encontra o poeta incentivo para recordar seus males
Seis horas enche e outras tantas vaza
A maré pelas margens do oceano,
E não larga a tarefa um ponto no ano,
Porquanto o mar rodeia, e o sol abrasa.

Desde a esfera primeira opaca, ou rasa,
A Lua com impulso soberano
Engole o mar por um secreto cano,
E quando o mar vomita, o mundo arrasa.

Muda-se o tempo, e suas temperanças,
Até o céu se muda, a terra, os mares,
E tudo está sujeito a mil mudanças.

Só eu, que todo o fim de meus pesares
Eram de algum minguante as esperanças,
Nunca o minguante vi de meus azares.


Aos afetos, e lágrimas derramadas na ausência da dama a quem queria bem
Ardor em firme coração nascido;
Pranto por belos olhos derramado;
Incêndio em mares de água disfarçado;
Rio de neve em fogo convertido:

Tu, que em um peito abrasas escondido;
Tu, que em um rosto corres desatado;
Quando fogo, em cristais aprisionado;
Quando cristal em chamas derretido.

Se és fogo como passas brandamente,
Se és neve, como queimas com porfia?
Mas ai, que andou Amor em ti prudente!

Pois para temperar a tirania,
Como quis que aqui fosse a neve ardente,
Permitiu parecesse a chama vazia.


Retrata o poeta as perfeições de sua senhora
Se há de ver-vos quem há de retratar-vos
E é forçoso cegar quem chega a ver-vos,
Sem agravar meus olhos, e ofender-vos,
Não há de ser possível copiar-vos.

Com neve, e rosas quis assemelhar-vos,
Mas fora honrar as flores, e abater-vos;
Dois zéfiros por olhos quis fazer-vos;
Mas quando sonham eles de imitar-vos?

Vendo que a impossíveis me aparelho,
Desconfiei da minha tinta imprópria,
E a obra encomendei a vosso espelho.

Porque nele com luz, e cor mais própria
Sereis, se não me engana o meu conselho,
Pintor, pintura, original e cópia.


Solitário em seu quarto á vista da luz do candeeiro porfia o poeta pensamentear exemplos de seu amor na borboleta

Ó tu do meu amor fiel traslado
Mariposa, entre as chamas consumida,
Pois se à força do ardor perdes a vida,
A violência do fogo me há prostrado.

Tu de amante o teu fim hás encontrado,
Essa flama girando apetecida,
Eu girando uma penha endurecida,
No fogo, que exalou, morro abrasado.

Ambos, de firmes, anelando chamas,
Tu a vida deixas, eu a morte imploro,
Nas constâncias iguais, iguais nas famas.

Mas, ai!, que a diferença entre nós choro;
Pois acabando tu ao fogo, que amas,
Eu morro, sem chegar à luz, que adoro.


Resposta a um amigo em matéria amorosa
Fábio, que pouco entendes de finezas!
Quem faz só o que pode, a pouco obriga:
Quem contra os impossíveis se afadiga,
A esse cede amor em mil ternezas.

Amor comete sempre altas empresas:
Pouco amor, muita sede não mitiga;
Quem impossíveis vence, este me instiga
Vencer por ele muitas estranhezas.

As durezas da cera o Sol abranda,
E da terra as branduras endurece,
Atrás do que resiste o raio se anda:

Quem vence a resistência se enobrece;
Quem pode, o que não pode, impera e manda,
Quem faz mais do que pode, esse merece.


Desaires da formosura com as pensões da natureza ponderadas na mesma dama
Rubi, concha de perlas peregrina,
Animado cristal, viva escarlata,
Duas safiras sobre lisa prata,
Ouro encrespado sobre prata fina.

Este o rostinho é de Caterina;
E porque docemente obriga, e mata,
Não livra o ser divina em ser ingrata,
E raio a raio os corações fulmina.

Viu Fábio uma tarde transportado
Bebendo admirações, e galhardias,
A quem já tanto amor levantou aras:

Disse igualmente amante, e magoado:
Ah muchacha gentil, que tal serias,
Se sendo tão formosa não cagaras!


A umas freiras que mandaram perguntar por ociosidade ao poeta a definição do Priapo e ele lhes mandou definido, e explicado nestas

1
Ei-lo vai desenfreado,
que quebrou na briga o freio,
todo vai de sangue cheio,
todo vai ensangüentado:
meteu-se na briga armado,
como quem nada receia,
foi dar um golpe na veia,
deu outro também em si,
bem merece estar assi,
quem se mete em casa alheia.

2
Inda que pareça nova,
Senhora, a comparação,
é semelhante ao furão,
que entra sem temer a cova,
quer faça calma, quer chova,
nunca receia as estradas,
mas antes se estão tapadas,
para as poder penetrar,
começa de pelejar
como porco às focinhadas.

3
Este lampreão com talo,
que tudo come sem nojo,
tem pesos como relojo,
também serve de badalo:
tem freio como cavalo,
e como frade capelo,
é coisa engraçada vê-lo
ora curto, ora comprido,
anda de peles vestido,
curtidas já sem cabelo.

4
Quem seu preço não entende
não dará por ele nada,
é como cobra enroscada
que em aquecendo se estende:
é círio, quando se acende,
é relógio, que não mente,
é pepino de semente,
tem cano como funil,
é pau para tamboril,
bate os couros lindamente.

5
É grande mergulhador,
e jamais perdeu o nado,
antes quando mergulhado
sente então gosto maior:
traz cascavéis como Assor,
e como tal se mantém
de carne crua também,
estando sempre a comer,
ninguém lhe ouvirá dizer,
esta carne falta tem.

6
Se se agasta, quebra as trelas
como leão assanhado,
tenho um só olho, e vazado,
tudo acerta às palpadelas:
amassa tendo gamelas
doze vezes sem cansar,
e traz já para amassar
as costas tão bem dispostas,
que traz envolto nas costas
fermento de levedar.

7
Tanto tem de mais valia
quanto tem de teso, e relho,
é semelhante ao coelho,
que somente em cova cria:
quer de noite, quer de dia,
se tem pasto, sempre come,
o comer lhe acende a fome,
mas às vezes de cansado,
de prazer inteiriçado,
dentro em si se esconde, e some.

8
Está sempre soluçando
como triste solitário,
mas se avista seu contrário,
fica como o barco arfando:
quer fique duro, quer brando,
tem natureza, e casta,
que no instante em que se agasta,
(qual galgo, que a lebre vê)
dá com tanta força, que,
os que tem presos, arrasta.

9
Tem uma contínua fome,
e sempre para comer
está pronto, e é de crer
que em qualquer das horas come:
traz por geração seu nome,
que por fim hei de explicar,
e também posso afirmar
que, sendo tão esfaimado,
dá leite como um danado,
a quem o quer ordenhar.

10
É da condição de ouriço,
que quando lhe tocam, se arma,
ergue-se em tocando alarma,
como cavalo castiço:
é mais longo, que roliço,
de condição mui travessa,
direi, porque não me esqueça,
que é criado nas cavernas,
e que somente entre as pernas
gosta de ter a cabeça.

11
É bem feito pelas costas,
que parece uma banana,
com as mulheres engana
trazendo-as bem descompostas:
nem boas, nem más respostas,
lhe ouviram dizer jamais,
porém causa efeitos tais,
que quem experimenta, os sabe,
quando na língua não cabe
a conta dos seus sinais.

12
É pincel, que cem mil vezes
mais que os outros pincéis val,
porque dura sempre a cal
com que caia, nove meses
este faz haver Meneses,
Almadas, e Vasconcelos,
Rochas, Farias, e Teles,
Coelhos, Britos, Pereiras
Sousas, e Castros, e Meiras,
Lancastros, Coutinhos, Melos.

13
Este, Senhora, a quem sigo,
de tão raras condições,
é caralho de culhões,
das mulheres muito amigo:
se o tomais na mão, vos digo
que haveis de achá-lo sisudo;
mas sorumbático, e mudo,
sem que vos diga o que quer,
vos haveis de oferecer
o seu serviço, contudo.


Definição do amor

Mandai-me, Senhores, hoje,
que em breves rasgos descreva
do Amor a ilustre prosápia,
e de Cupido as proezas.

Dizem que da clara escuma,
dizem que do mar nascera,
que pegam debaixo d’água
as armas, que Amor carrega.

Outros, que fora ferreiro
seu pai, onde Vênus bela
serviu de bigorna, em que
malhava com grã destreza.

Que a dois assopros lhe fez
o fole inchar de maneira,
que nele o fogo acendia,
nela aguava a ferramenta.

Nada disto é, nem se ignora,
que o Amor é fogo, e bem era
tivesse por berço as chamas
se é raio nas aparências.

Este se chama Monarca,
ou Semideus se nomeia,
cujo céu são esperanças,
cujo inferno são ausências.

Um Rei, que mares domina,
um Rei, o mundo sopeia,
sem mais tesouro que um arco,
sem mais arma que uma seta.

O arco talvez de pipa,
a seta talvez de esteira,
despido como um maroto,
cego como uma toupeira.

Um maltrapilho, um ninguém,
que anda hoje nestas eras
com o cu à mostra, jogando
com todos a cabra-cega.

Tapando os olhos da cara,
por deixar o outro alerta,
por detrás à italiana,
por diante à portuguesa.

Diz que é cego, porque canta,
ou porque vende gazetas
das vitórias, que alcançou
na conquista das finezas.

Que vende também folhinhas
cremos por coisa mui certa,
pois nos dá os dias santos,
sem dar ao cuidado tréguas;

E porque despido o pintam
é tudo mentira certa,
mas eu tomara ter junto
o que Amor a mim me leva.

Que tem asas com que voa
e num pensamento chega
assistir hoje em Cascais
logo em Coina, e Salvaterra.

Isto faz um arrieiro
com duas porradas tesas:
e é bem, que no Amor se gabe,
o que o vinho só fizera!

E isto é Amor? é um corno.
Isto é Cupido? má peça.
Aconselho que o não comprem
ainda que lhe achem venda.

Isto, que o Amor se chama,
este, que vidas enterra,
este, que alvedrios prostra,
este, que em palácios entra:

Este, que o juízo tira,
este, que roubou a Helena,
este, que queimou a Troia,
e a Grã-Bretanha perdera:

Este, que a Sansão fez fraco,
este, que o ouro despreza,
faz liberal o avarento,
é assunto dos poetas:

Faz o sisudo andar louco,
faz pazes, ateia a guerra,
o frade andar desterrado,
endoidece a triste freira.

Largar a almofada a moça,
ir mil vezes à janela,
abrir portas de cem chaves,
e mais que gata janeira.

Subir muros e telhados,
trepar chaminés e gretas,
chorar lágrimas de punhos,
gastar em escritos resmas.

Gastar cordas em descantes,
perder a vida em pendências,
este, que não faz parar
oficial algum na tenda.

O moço com sua moça,
o negro com sua negra,
este, de quem finalmente
dizem que é glória, e que é pena.

É glória, que martiriza,
uma pena, que receia,
é um fel com mil doçuras,
favo com mil asperezas.

Um antídoto, que mata,
doce veneno, que enleia,
uma discrição sem siso,
uma loucura discreta.

Uma prisão toda livre,
uma liberdade presa,
desvelo com mil descansos,
descanso com mil desvelos.

Uma esperança, sem posse,
uma posse, que não chega,
desejo, que não se acaba,
ânsia, que sempre começa.

Uma hidropisia da alma,
da razão uma cegueira,
uma febre da vontade,
uma gostosa doença.

Uma ferida sem cura,
uma chaga, que deleita,
um frenesi dos sentidos,
desacordo das potências.

Um fogo incendido em mina,
faísca emboscada em pedra,
um mal, que não tem remédio,
um bem, que se não enxerga.

Um gosto, que se não conta,
um perigo, que não deixa,
um estrago, que se busca,
ruína, que lisonjeia.

Uma dor, que se não cala,
pena, que sempre atormenta,
manjar, que não enfastia,
um brinco, que sempre enleva.

Um arrojo, que enfeitiça,
um engano, que contenta,
um raio, que rompe a nuvem,
que reconcentra a esfera.

Víbora, que a vida tira
àquelas entranhas mesmas,
que segurou o veneno,
e que o mesmo ser lhe dera.

Um áspide entre boninas,
entre bosques uma fera,
entre chamas salamandra,
pois das chamas se alimenta.

Um basilisco, que mata,
lince, que tudo penetra,
feiticeiro, que adivinha,
marau, que tudo suspeita.

Enfim o Amor é um momo,
uma invenção, uma teima,
um melindre, uma carranca,
uma raiva, uma fineza.

Uma meiguice, um afago,
um arrufo, e uma guerra,
hoje volta, amanhã torna,
hoje solda, amanhã quebra.

Uma vara de esquivanças,
de ciúmes vara e meia,
um sim, que quer dizer não,
não, que por sim se interpreta.

Um queixar de mentirinha,
um folgar muito deveras,
um embasbacar na vista,
um ai, quando a mão se aperta.

Um falar por entre os dentes,
dormir a olhos alerta,
que estes dizem mais dormindo,
do que a língua diz discreta.

Uns temores de mal pago,
uns receios de uma ofensa,
um dizer choro contigo,
choramingar nas ausências.

Mandar brinco de sangrias,
passar cabelos por prenda,
dar palmitos pelos Ramos,
e dar folar pela festa.

Anal pelo São João,
alcachofras na fogueira,
ele pedir-lhe ciúmes,
ela sapatos e meias.

Leques, fitas e manguitos,
rendas da moda francesa,
sapatos de marroquim,
guarda-pé de primavera.

Livre Deus, a quem encontra,
ou lhe suceder ter freira;
pede-vos por um recado
sermão, cera e caramelas.

Arre lá com tal amor!
isto é amor? é quimera,
que faz de um homem prudente
converter-se logo em besta.

Uma bofia, uma mentira
chamar-lhe-ei, mais depressa,
fogo selvagem nas bolsas,
e uma sarna das moedas.

Uma traça dos descanso,
do coração bertoeja,
sarampo da liberdade,
carruncho, rabuge e lepra.

É este, o que chupa, e tira
vida, saúde e fazenda,
e se hemos falar verdade
é hoje o Amor desta era

Tudo uma bebedice,
ou tudo uma borracheira,
que se acaba co’o dormir,
e co’o dormir se começa.

O Amor é finalmente
um embaraço de pernas,
uma união de barrigas,
um breve tremor de artérias.

Uma confusão de bocas,
uma batalha de veias,
um reboliço de ancas,
quem diz outra coisa, é besta.


A Jesus Cristo nosso senhor
Pequei, Senhor; mas não porque hei pecado,
Da vossa alta clemência me despido;
Porque, quanto mais tenho delinqüido,
Vos tenho a perdoar mais empenhado.

Se basta a vos irar tanto pecado,
A abrandar-vos sobeja um só gemido:
Que a mesma culpa, que vos há ofendido,
Vos tem para o perdão lisonjeado.

Se uma ovelha perdida e já cobrada
Glória tal e prazer tão repentino
Vos deu, como afirmais na sacra história,

Eu sou, Senhor, a ovelha desgarrada,
Cobrai-a; e não queirais, pastor divino,
Perder na vossa ovelha a vossa glória.


A Cristo S. N. crucificado estando o poeta na última hora de sua vida

Meu Deus, que estais pendente de um madeiro,
Em cuja lei protesto de viver,
Em cuja santa lei hei de morrer
Animoso, constante, firme e inteiro:

Neste lance, por ser o derradeiro,
Pois vejo a minha vida anoitecer,
É, meu Jesus, a hora de se ver
A brandura de um Pai, manso cordeiro.

Mui grande é vosso amor e o meu delito;
Porém pode ter fim todo o pecar,
E não o vosso amor, que é infinito.

Esta razão me obriga a confiar,
Que, por mais que pequei, neste conflito
Espero em vosso amor de me salvar.


Achando-se um braço perdido do Menino Deus de N. S. das Maravilhas, que desacataram infiéis na Sé da Bahia

O todo sem a parte não é todo;
A parte sem o todo não é parte;
Mas se a parte o faz todo, sendo parte,
Não se diga que é parte, sendo o todo.

Em todo o Sacramento está Deus todo,
E todo assiste inteiro em qualquer parte,
E feito em partes todo em toda a parte,
Em qualquer parte sempre fica todo.

O braço de Jesus não seja parte,
Pois que feito Jesus em partes todo,
Assiste cada parte em sua parte.

Não se sabendo parte deste todo,
Um braço que lhe acharam, sendo parte,
Nos diz as partes todas deste todo.


No sermão que pregou na Madre de Deus d. João Franco de Oliveira pondera o poeta a fragilidade humana

Na oração, que desaterra.................... a terra,
Quer Deus que a quem está o cuidado dado,
Pregue que a vida é emprestado......... estado,
Mistérios mil, que desenterra............. enterra.

Quem não cuida de si, que é terra,...... erra,
Que o alto Rei, por afamado................ amado,
É quem lhe assiste ao desvelado.......... lado,
Da morte ao ar não desaferra.............. aferra.

Quem do mundo a mortal loucura....... cura
À vontade de Deus sagrada.................. agrada,
Firma-lhe a vida em atadura................ dura.

Ó voz zelosa, que dobrada................... brada,
Já sei que a flor da formosura.............. usura,
Será no fim desta jornada.................... nada.


Moraliza o poeta nos ocidentes do Sol a inconstância dos bens do mundo

Nasce o Sol, e não dura mais que um dia,
Depois da Luz se segue a noite escura,
Em tristes sombras morre a formosura,
Em contínuas tristezas a alegria.

Porém, se acaba o Sol, por que nascia?
Se é tão formosa a Luz, por que não dura?
Como assim se transfigura?
Como o gosto da pena assim se fia?

Mas no Sol, e na Luz falte a firmeza,
Na formosura não se dê constância,
E na alegria sinta-se a tristeza.

Começa o mundo enfim pela ignorância,
E tem qualquer dos bens por natureza
A firmeza somente na inconstância.


Terceira vez impaciente muda o poeta o seu soneto na forma seguinte
Discreta, e formosíssima Maria,
Enquanto estamos vendo claramente
Na vossa ardente vista o sol ardente,
E na rosada face a aurora fria:

Enquanto pois produz, enquanto cria
Essa esfera gentil, mina excelente
No cabelo o metal mais reluzente,
E na boca a mais fina pedraria:

Gozai, gozai da flor da formosura,
Antes que o frio da madura idade
Tronco deixe despido, o que é verdura.

Que passado o zênite da mocidade,
Sem a noite encontrar da sepultura,
É cada dia ocaso da beldade.


À morte de Afonso Barbosa da Franca, amigo do poeta
Quem pudera de pranto soçobrado,
Quem pudera em choro submergido
Dizer, o que na vida te hei querido,
Contar, o que na morte te hei chorado.

Só meu silêncio diga o meu cuidado,
Que explica mais que a voz de um afligido;
Porque na esfera curta de um sentido
Não cabe um sentimento dilatado.

Não choro, amigo, a tua avara sorte,
Choro a minha desgraça desmedida,
Que em privar-me de ver-te foi mais forte.

Tu com tanta memória repetida
Acharás nova vida em mãos da morte,
Eu, triste, nova morte, em mãos da vida.


Ao Dia do Juízo

O alegre do dia entristecido,
O silêncio da noite perturbado,
O resplandor do sol todo eclipsado,
E o luzente da lua desmentido.

Rompa todo o criado em um gemido.
Que é de ti, mundo? onde tens parado?
Se tudo neste instante está acabado,
Tanto importa o não ser, como o haver sido.

Soa a trombeta da maior altura,
A que a vivos e mortos traz o aviso
Da desventura de uns, de outros ventura.

Acabe o mundo, porque é já preciso,
Erga-se o morto, deixe a sepultura,
Porque é chegado o Dia do Juízo.


.

Aucun commentaire:

Enregistrer un commentaire