Pequena seleção dos meus sonetos preferidos de Camões.
Soneto 9
Tanto de meu estado me acho incerto,
Que em vivo ardor tremendo estou de frio;
Sem causa, juntamente choro e rio,
O mundo todo abarco e nada aperto.
É tudo quanto sinto, um desconcerto;
Da alma um fogo me sai, da vista um rio;
Agora espero, agora desconfio,
Agora desvario, agora acerto.
Estando em Terra, chego ao Céu voando;
Numa hora acho mil ano; e é de jeito
Que em mil anos não posso achar uma hora.
Se me pergunta alguém porque assim ando,
Respondo que não sei; porém suspeito
Que é só porque vos vi, minha Senhora.
Soneto 10
Transforma-se o amador na coisa amada
Por virtude do muito imaginar;
Não tenho, logo, mais que desejar,
Pois em mim tenho a parte desejada.
Se nela está minh’alma transformada,
Que mais deseja o corpo de alcançar?
Em si somente pode descansar,
Pois consigo tal alma está liada.
Mas esta linda e pura semidéia,
Que, como o acidente em seu sujeito,
Assim com a alma minha se conforma,
Está no pensamento como idéia;
O vivo e puro amor de que sou feito,
Como a matéria simples busca a forma.
Soneto 15
Busque Amor novas artes, novo engenho
Para matar-me, e novas esquivanças;
Que não pode tirar-me as esperanças,
Que mal me tirará o que eu não tenho.
Olhai de que esperanças me mantenho!
Vede que perigosas seguranças!
Que não temo contrastes nem mudanças,
Andando em bravo mar, perdido o lenho.
Mas, conquanto não possa haver desgosto
Onde esperança falta, lá me esconde
Amor um mal, que mata e não se vê;
Que dias há que n’alma me tem posto
Um não sei quê, que nasce não sei onde,
Vem não sei como e dói não sei porquê.
Soneto 19
Alma minha gentil, que te partiste
Tão cedo desta vida, descontente,
Repousa lá no Céu eternamente,
E viva eu cá na terra sempre triste.
Se lá no assento etéreo, onde subiste,
Memória desta vida se consente,
Não te esqueças daquele amor ardente
Que já nos olhos meus tão puro viste.
E se vires que pode merecer-te
Alguma coisa a dor que me ficou
Da mágoa, sem remédio, de perder-te,
Roga a Deus, que teus anos encurtou,
Que tão cedo de cá me leve a ver-te,
Quão cedo de meus olhos te levou.
Soneto 23
Cara minha inimiga, em cuja mão
Pôs meus contentamentos a ventura,
Faltou-te a ti na terra sepultura,
Porque me falte a mim consolação.
Eternamente as águas lograrão
A tua peregrina formosura;
Mas, enquanto me a mim a vida dura,
Sempre viva em minh’alma te acharão.
E, se os meus rudes versos podem tanto
Que possam prometer-te longa história
Daquele amor tão puro e verdadeiro,
Celebrada serás sempre em meu canto;
Porque enquanto no mundo houver memória,
Será minha escritura teu letreiro.
Soneto 24
Aquela triste e leda madrugada,
Cheia toda de mágoa e de piedade,
Enquanto houver no mundo saudade
Quero que seja sempre celebrada.
Ela só, quando amena e marchetada
Saía, dando ao mundo claridade,
Viu apartar-se de uma outra vontade,
Que nunca poderá ver-se apartada.
Ela só viu as lágrimas em fio.
Que de uns e de outros olhos derivadas,
Se acrescentaram em grande e largo rio.
Ela ouviu as palavras magoadas
Que puderam tornar o fogo frio
E dar descanso às almas condenadas.
Soneto 29
Sete anos de pastor Jacó servia
Labão, pai de Raquel, serrana bela;
Mas não servia ao pai, servia a ela,
E a ela só por prêmio pretendia.
Os dias, na esperança de um só dia,
Passava, contentando-se com vê-la;
Porém o pai, usando de cautela,
Em lugar de Raquel lhe dava Lia.
Vendo o triste pastor que com enganos
Lhe fora assim negada a sua pastora,
Como se a não tivera merecida,
Começa de servir outros sete anos,
Dizendo: - Mais servira, se não fora
Para tão longo amor tão curta a vida!
Soneto 40
Alegres campos, verdes arvoredos,
Claras e frescas águas de cristal,
Que em vós os debuxais ao natural,
Discorrendo da altura dos rochedos;
Silvestres montes, ásperos penedos,
Compostos em concerto desigual:
Sabei que, sem licença de meu mal,
Já não podeis fazer meus olhos ledos.
E, pois me já não vedes como vistes,
Não me alegrem verduras deleitosas,
Nem águas que correndo alegres vêm.
Semearei em vós lembranças tristes,
Regando-vos com lágrimas saudosas,
E nascerão saudades de meu bem.
Soneto 48
Oh! Como se me alonga, de ano em ano
A peregrinação cansada minha!
Como se encura, e como ao fim caminha
Este meu breve e vão discurso humano!
Vai-se gastando a idade e cresce o dano;
Perde-se-me um remédio, que antes tinha;
Se por experiência se adivinha,
Qualquer grande esperança é grande engano.
Corro após este bem que não se alcança;
No meio do caminho me falece;
Mil vezes caio e perco a confiança.
Quando ele foge, eu tardo; e, na tardança,
Se os olhos ergo, a ver se ainda parece,
Da vista se me perde e da esperança.
Soneto 57
Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,
Muda-se o ser, muda-se a confiança;
Todo o mundo é composto de mudança,
Tomando sempre novas qualidades.
Continuamente vemos novidades,
Diferentes em tudo da esperança;
Do mal ficam as mágoas na lembrança,
E do bem (se algum houve), as saudades.
O tempo cobre o chão de verde manto,
Que já coberto foi de neve fria,
E em mim converte em choro o doce encanto.
E, afora este mudar-se cada dia,
Outra mudança faz de mor espanto:
Que não se muda já como soia.
Soneto 67
Pois meus olhos não cansam de chorar
Tristezas, que não cansam de cansar-me;
Pois não abranda o fogo em que abrasar-me
Pôde quem eu jamais pude abrandar;
Não canse o cego Amor de me guiar
A parte donde não saiba tornar-me;
Nem deixe o mundo todo de escutar-me,
Enquanto me a voz fraca não deixar.
E se nos montes, rios, ou em vales,
Piedade mora, ou dentro mora Amor
Em feras, aves, plantas, pedras, águas,
Ouçam a longa história de meus males,
E curem sua dor com minha dor,
Que grandes mágoas podem curar mágoas.
Soneto 75
Ditoso seja aquele que somente
Se queixa de amorosas esquivanças;
Pois por elas não perde as esperanças
De poder n’algum tempo ser contente.
Ditoso seja quem, estando ausente,
Não sente mais que as penas das lembranças;
Porque, inda que se tema de mudanças,
Menos se teme a dor quando se sente.
Ditoso seja, enfim, qualquer estado,
Onde enganos, desprezos e isenção
Trazem o coração atormentado.
Mas triste quem se sente magoado
De erros em que não pode haver perdão,
Sem ficar n’alma a mágoa do pecado.
Soneto 81
Amor é um fogo que arde sem se ver;
É ferida que dói e não se sente;
É um contentamento descontente,
É dor que desatina sem doer;
É um não querer mais que bem querer;
É um andar solitário entre a gente;
É nunca contentar-se de contente;
É um cuidar que ganha em se perder.
É querer estar preso por vontade;
É servir a quem vence, o vencedor;
É ter com quem nos mata lealdade.
Mas como causar pode seu favor
Nos corações humanos amizade,
Se tão contrário a si é o mesmo Amor?
Soneto 85
Foi já num tempo doce cousa amar,
Enquanto m’enganava a esperança;
O coração, com esta confiança,
Todo se desfazia em desejar.
Ó vão, caduco e débil esperar!
Como se desengana uma mudança!
Que, quanto é mor a bem-aventurança,
Tanto menos se crê que há de durar!
Quem já se viu contente e prosperado,
Vendo-se em breve tempo em pena tanta,
Razão tem de viver bem magoado;
Porém, quem tem o mundo exprimentado,
Não o magoa a pena nem o espanta,
Que mal se estranhará o costumado.
Soneto 91
Vós que, d’olhos suaves e serenos,
Com justa causa a vida cativais,
E que os outros cuidados condenais
Por indevidos, baixos e pequenos;
Se ainda do Amor domésticos venenos
Nunca provastes, quero que saibais
Que é tanto mais o Amor despois que amais,
Quanto são mais as causas de ser menos.
E não cuide ninguém que algum defeito,
Quando na cousa amada s’apresenta,
Possa diminuir o Amor perfeito;
Antes o dobra mais; e, se atormenta,
Pouco e pouco o desculpa o brando peito;
Que Amor com seus contrários se acrescenta.
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