mardi 3 mai 2011

1914

Continuando a seleção de poemas 'pouco conhecidos' de Fernando Pessoa. Voilà os que foram escritos ao longo do ano de 1914...




AMEM OUTROS a graça feminina
Gozem sonhar seus lábios entre seios
Outros e muitos... que meus cantos, dei-os
À tua formosura peregrina...

Meu doce Apolo jovem... Ó divina
Flor adônica de ópios e de enleios,
Ver-te é esquecer que neste mundo há anseios
Carnais, ó suave Vênus masculina.

Ninguém descobrirá o que tu és...
Meu coração, óleo que unja teus pés –
Quem sabe se tu mesmo o sentirás?...

Que importa... E a vergonha e o mal que importa?
Quem me dera viver à tua porta
Inda que vendo o amor que a outrem dás!...



Ó QUE HORROROSO medo de sentir-me!
Como me é erro e fome o existir!
E cada oco minuto vem pedir-me
O cansaço forçado de o sentir...

Sinto que nem sequer erguer os braços
Posso mesmo que a fim de ter um céu...
Meus próprios pensamentos soam lassos
E alguém em mim tem ódio de ser eu...

Hoje, não sei porquê, um tédio imenso,
Um tédio enorme como um céu desceu
Sobre o meu coração deixado e denso
De tudo quanto sente que sofreu.



NÃO SEI PORQUÊ, de repente
Esfriou-me o coração...
Vaga sensação doente
E remota a sensação
De só viver em vão...

Não é tédio, nem tristeza
Nem uma dor qualquer...
Mas com que subtileza
Me fez a alma doer
E o corpo estremecer!

Que terei eu perdido
Numa vida de além –
Um amor, um sentido,
Um irmão, uma mãe?...
Que cousa que era um bem?

Qualquer cousa lembrada
Por qualquer cousa em mim...
Ah, como a vida é errada
E de um mistério sem fim
Esta vida em que vim!...



TODAS AS MINHAS SENSAÇÕES são Deus.
Transbordo transcender-me.
Pisando a terra dura os passos meus
Sinto Deus pertencer-me
Piso com passos de alma os vastos céus...

Cesso de me conter hora após hora
Constantemente sou mais do que sou...
O passado e o futuro sempre agora
São para o Eterno onde o meu ser-Deus mora,
Para o Deus onde sempre estou...

Profuso de diariamente ser-me,
Prolixo de ser Deus-olvido em mim...
Estou sempre no fim
De definir-me por não-pertencer-me...
As minhas horas, rosas de perder-me
Perfumam de Infinito o meu jardim.

Saibo-me a horas imortais se vejo
A transparência-Deus da minha vida.
Meu conceito de mim é um desejo
Que Deus obtém da hora ser medida...
No ar azul vicejo
E imita Deus a flor de haste vivida.

A palmos corpos não me meço
A sentimentos, alma, não me cinjo...
Caibo somente onde me esqueço
E, céu longínquo, tinjo
De azul lugares... Finjo
E no horizonte Deus eu amanheço.

Abro todas as portas
E são todos os quartos, átrios, salas
Deus sem paredes, qual as crenças mortas
Dizem...

Não tenho fim ou dentro...
O modo como vejo tudo é Deus...
Minha alma e raio e centro
Busco meu ser nos céus
E estrela, ou espaço azul. ou sinistro além
Sou um eu desterrado que Deus tem.

Sondo-me e sou sem fundo
Busco-me e não me vejo um fim
De mim próprio me inundo
E encanto-me de mim...
Tanto me inclino e me circundo
Quanto mais me contenho a mim afim.

Movo-me e fico em Deus...
Falo e em silêncio sou...
Os pensamentos meus
São onde nunca estou...
Entre áleas de mistério vou
E a minha sombra é o azul dos céus.

Clepsidra a alma e erro
Pingo horas imortais...
Eu sou o meu desterro.
Da praia do exílio ou do ermo cais
Fito o mar, consciente do meu monte,
Sou o horizonte que o meu ser retém
E Deus é o que há além
Deste abstracto horizonte.



ÀS VEZES nas praias atiro
Pedras ao mar
E do meu gesto vão retiro
Um gosto a errar,
Um sabor a Império deixado
Por quem podia
Centrar o seu reinado
Mas deixou tudo só p’ra ter o agrado
De ver através de si o céu e o dia.



CANÇÃO
Silfos ou gnomos tocam?...
Roçam nos pinheirais
Sombras e bafos leves
De ritmos musicais.

Ondulam como em voltas
De estradas não sei onde,
Ou como alguém que entre árvores
Ora se mostra ou esconde.

Forma longínqua e incerta
Do que eu jamais terei...
Mal oiço, e quasi choro,
Porque choro não sei.

Tão tênue melodia
Que mal sei se ela existe
Ou se é só o crepúsculo,
Os pinhais e eu estar triste.

Mas cessa, como uma brisa
Esquece a forma aos seus ais;
E agora não há mais música
Do que a dos pinheirais.



UNS VERSOS QUAISQUER
Vive o momento com saudade dele
Já ao vivê-lo...
Barcas vazias, sempre nos impele
Como a um solto cabelo
Um vento para longe, e não sabemos,
Ao viver, que sentimos ou queremos...

Demo-nos pois a consciência disto
Como de um lago
Posto em paisagens de torpor mortiço
Sob um céu ermo e vago,
E que a nossa consciência de nós seja
Uma cousa que nada já deseja...

Assim idênticos à hora toda
Em seu pleno sabor,
Nossa vida será nossa ante-boda:
Não nós, mas uma cor,
Um perfume, um meneio de arvoredo,
E a morte não virá nem tarde ou cedo...

Porque o que importa é que já nada importe...
Nada nos vale
Que se debruce sobre nós a Sorte,
Ou, tênue e longe, cale
Seus gestos... Tudo é o mesmo... Eis o momento...
Sejamo-lo... Pra quê o pensamento?...



NÃO SEI o que é que me falta
Que não vivo como quero...
Sempre qualquer coisa espero
E isso só me sobressalta...

O quê? Saber que não tenho
Essa coisa, ou que ela venha?
Não sei...



COMO A NOITE é longa!
Toda a noite é assim...
Senta-te, ama, perto
Do leito onde esperto.
Vem pr’ao pé de mim...

Amei tanta cousa...
Hoje nada existe.
Aqui ao pé da cama
Canta-me, minha ama,
Uma canção triste.

Era uma princesa
Que amou... Já não sei...
Como estou esquecido!
Canta-me ao ouvido
E adormecerei...

Que é feito de tudo?
Que fiz eu de mim?
Deixa-me dormir,
Dormir a sorrir
E seja isto o fim.



BATE A LUZ no cimo
Da montanha, vê...
Sem querer, eu cismo
Mas não sei em quê...

Não sei que perdi
Ou que não achei...
Vida que vivi,
Que mal eu amei!...

Hoje quero tanto
Que o não posso ter.
De manhã há o pranto
E ao anoitecer.

Tomara eu ter jeito
Para ser feliz...
Como o mundo é estreito,
E o pouco que eu quis!

Vai morrendo a luz
No alto da montanha...
Como um rio a flux
A minha alma banha,

Mas não me acarinha,
Não me acalma nada...
Pobre criancinha
Perdida na estrada!...



SABER? Que sei eu?
Pensar é descrer.
- Leve e azul é o céu –
Tudo é tão difícil
De compreender!...

A ciência, uma fada
Num conto de louco...
- A luz é lavada –
Como o que nós vemos
É nítido e pouco!

Que sei eu que abrande
Meu anseio fundo?
- Ó céu real e grande! –
Ah, saber o modo
De pensar o mundo!



VAI REDONDA e alta
A lua. Que dor
É em mim um amor?...
Não sei que me falta...

Não sei o que quero,
Nem posso sonhá-lo...
Como o luar é ralo
No chão vago e austero!...

Ponho-me a sorrir
P’ra a ideia de mim...
E tão triste, assim
Como quem está a ouvir

Uma voz que o chama
Mas não sabe donde
(Voz que em si se esconde)
E só a ela ama...

E tudo isto é o luar
E a minha dor
Tornado exterior
Ao meu meditar...

Que desassossego!
Que inquieta ilusão!
E esta sensação
Oca, de ser cego

No meu pensamento,
Na minha vontade...
Ah, a suavidade
Do luar sem tormento

Batendo na alma
De quem só sentisse
O luar, e existisse
Só p’ra a sua calma.



MEU PENSAMENTO é um rio subterrâneo.
Para que terras vai e donde vem?
Não sei... na noite em que o meu ser o tem
Emerge dele um ruído subitâneo

De origens no Mistério extraviadas
De eu compreendê-las..., misteriosas fontes
Habitando a distância de ermos montes
Onde os momentos são a Deus chegados...

De vez em quando luze em minha mágoa,
Como um farol num mar desconhecido,
Um movimento de correr, perdido
Em mim, um pálido soluço de água...

E eu relembro de tempos mais antigos
Que a minha consciência da ilusão
Águas divinas percorrendo o chão
De verdores uníssonos e amigos,

E a ideia de uma Pátria anterior
À forma consciente do meu ser
Dói-me no meu desejo, e vem bater
Como uma onda de encontro à minha dor.

Escuto-o... Ao longe, no meu vago tacto
Da minha alma, perdido som incerto,
Como um eterno rio indescoberto,
Mais que a ideia de um rio certo e abstracto...

E p’ra onde é que ele vai, que se extravia
Do meu ouvi-lo? A que cavernas desce?
Em que frios de Assombro é que arrefece?
De que névoas soturnas se anuvia?

Não sei... Eu perco-o... E outra vez regressa
A luz e a cor do mundo claro e actual,
E na interior distância do meu Real
Como se a alma acabasse, o rio cessa...



AMEAÇOU CHUVA. E a negra
Nuvem passou sem mais...
Todo o meu ser se alegra
Em alegrias iguais.

Nuvem que passa... Céu
Que fica e nada diz...
Vazio azul sem véu
Sobre a terra feliz.

E a terra é verde, verde...
Porque então minha vista
Por meus sonhos se perde?
De que então minha alma dista?



SOBRE AS LANDES (Quais landes?,
As que eu sonho talvez)
O vento põe fúrias grandes
Na sua rapidez...

E uma tristeza desce
Sobre mim como se eu
Ante essa lande estivesse
E não fosse um sonho meu.



CHOVE?... Nenhuma chuva cai...
Então onde é que eu sinto um dia
Em que o ruído da chuva atrai
A minha inútil agonia?

Onde é que chove, que eu o ouço?
Onde é que é triste, ó claro céu?
Eu quero sorrir-te e não posso
Ó céu azul, chamar-te meu...

E o escuro ruído da chuva
É constante em meu pensamento.
Meu ser é a invisível curva
Traçada pelo som do vento...

E eis que ante o sol e o azul do dia,
Como se a hora me estorvasse,
Eu sofro... E a luz e sua alegria
Cai aos meus pés como um disfarce...

Ah, na minha alma sempre chove...
Há sempre escuro dentro em mim.
Se escuto, alguém dentro em mim ouve
A chuva, como a voz de um fim.

Quando é que eu serei da tua cor,
Do teu plácido e azul encanto,
Ó claro dia exterior?
Ó céu mais útil que o meu pranto?



PESCADOR QUE RECOLHES a esta hora
Com vela firme sob um céu sereno
À tua aldeia de pescas, sob o aceno
Aéreo das estrelas que a noite ora
No teu barco antiqüíssimo e pequeno...

Longe de mim não na Europa aonde
A paz do teu regresso de pescar
Chama por quanto no meu ser se esconde
De dor e mágoa, e em mim já se confunde
Com o desejo flor do meu penar..,

E com uma furiosa raiva rude
Amaldiçoo não ser tu e os teus...
Não ter teu longe de mim, e a saúde
Que deve haver na tua vã virtude
De ser só pescador sob amplos céus.

Viril, sagaz a teu ingênuo modo,
Mas sobretudo longe de onde estou,
Vai para ti o meu anseio todo...
Ser um momento ao menos esse lodo
Ser quem tu és só pra ser quem não sou...

Viver à larga de pulmões e vista!
Correr perigos como quem só vive!
Não ser poeta, pensador, artista!
Empenhado somente na conquista
Daquilo que me faz mais eu... Mais livre.

Ter na minha alma com que construir
Barco, vela, nocturna paz, e mar,
E, dentro em mim, feito tu só, partir...
Não sei o quê iria eu encontrar...
Que importa? Ah, não pensar e não sentir!



ERMO sob o ermo céu
Esse mesmo ermo céu
Fita-o deste ermo lago...
Há árvores à roda...
Há um inquieto e vago
Desassossego em toda
A paisagem à roda...

Eu não sei porque existo...
Vou à beira do lago
E fito o meu rosto vago
Na água onde o mal avisto...
Não sei quem é que existo...
Sorrio, um triste e vago
Sorrir só para o lago...

Dói-me a alma que trago...
(Tudo isto é o céu e o lago
Mas eles não são isto)



O MEU MODO de ser consciente
É um potentado do Oriente...
Seus trajes são de sedas caras.
No seu turbante há pedras raras.

À sua janela encostado
Ele vê o sol encarnado
Sobre montanhas de bordado
E aspira, cheio de ermo mal,
A um domínio ocidental.


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